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quinta-feira, janeiro 19, 2006


O atestado médico 

José Ricardo Costa
(professor de filosofia que escreve semanalmente para o jornal "O Torrejano")

Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º ano e vai ter de fazer uma vigilância.

Continue a imaginar. O despertador avariou durante a noite. Ou fica preso no elevador. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou o quente, pastoso, húmido e fétido pequeno-almoço em cima da sua imaculada camisa.

Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta. Ora esta coisa de um professor ficar com faltas injustificadas é complicada, por isso convém justificá-la. A questão agora é: como justificá-la? Passemos então à parte divertida.

A única justificação para o facto de ficar preso no elevador, do despertador avariar ou de não poder ir para uma sala do exame com a camisa vomitada, ababalhada e malcheirosa, é um atestado médico. Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui do atestado médico será o despertador ou o elevador. Mas não. Só uma doença poderá justificar a sua ausência na sala do exame.

Vai ao médico. E, a partir deste momento, a situação deixa de ser divertida para passar a ser hilariante.

Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo. Enfim, com o sorriso de Jorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidade do padre Melícias. A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode ser explicado através de noções básicas da psicopatologia da vida quotidiana. Os mesmos que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto nazi ou o sucesso da TVI.

O professor sabe que não está doente. O médico sabe que ele não está doente. O presidente do executivo sabe que ele não está doente. O director regional sabe que ele não está doente. O Ministério da Educação sabe que ele não está doente. O próprio legislador, que manda a um professor que fica preso no elevador apresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente.

Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que não toca, do elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país que está doente.

Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente.

Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser racional, útil e eficaz em certas ocasiões. O que já será patológico é o desejo que temos de sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade.

Lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia Goebbels: uma mentira várias vezes repetida transforma-se numa verdade. Já Aristóteles percebia uma coisa muito engraçada: quando vamos ao teatro, vamos com o desejo e uma predisposição para sermos enganados. Mas isso é normal. Sabemos bem, depois de termos chorado baba e ranho a ver o "ET", que este é um boneco e que temos de poupar a baba e o ranho para outras ocasiões.

O problema é que em Portugal a ficção se confunde com a realidade. Portugal é ele próprio uma produção fictícia, provavelmente mesmo desde D. Afonso Henriques, que Deus me perdoe.

A começar pela política. Os nossos políticos são descaradamente mentirosos.

Só que ninguém leva a mal porque já estamos habituados. Aliás, em Portugal é-se penalizado por falar verdade, mesmo que seja por boas razões, o que significa que em Portugal não há boas razões para falar verdade.

Se eu, num ambiente formal, disser a uma pessoa que tem uma nódoa na camisa, ela irá levar a mal. Fica ofendida. Se eu digo isso é para a ajudar, para que possa disfarçar a nódoa e não fazer má figura. Mas ela fica zangada comigo só porque eu vi a nódoa, sabe que eu sei que tem a nódoa e porque assumi perante ela que sei que tem a nódoa e que sei que ela sabe que eu sei.

Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normal que assim seja. Por exemplo, lemos revistas sociais e ficamos derretidos (não falo do cérebro, mas de um plano emocional) ao vermos casais felicíssimos e com vidas de sonho. Pronto, sabemos que aquilo é tudo mentira, que muitos deles divorciam-se ao fim de três meses e que outros vivem um alcoolismo disfarçado. Mas adoramos fingir que aquilo é tudo verdade.

Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses. Somos ignorantes e culturalmente miseráveis, mas somos doutores e engenheiros. Fazemos malabarismos e contorcionismos financeiros, mas vamos passar férias a Fortaleza. Fazemos estádios caríssimos para dois ou três jogos em 15 dias, temos auto-estradas modernas e europeias, mas para ver passar, a seu lado, entulho, lixo, mato por limpar, eucaliptos, floresta queimada, barracões com chapas de zinco, casas horríveis e fábricas desactivadas. Portugal mente compulsivamente. Mente perante si próprio e mente perante o mundo.

Claro que não é um professor que falta à vigilância de um exame por ficar preso no elevador que precisa de um atestado médico. É Portugal que precisa, antes que comece a vomitar sobre si próprio.


(Obrigado Ana!)

3 comentários

Comentários Blogger(3):

Nuninho,

Não consigo alcançar... Aonde queres chegar com este texto?

Começo logo por não perceber a metáfora do elevador avariado e dos atestados falsos. É uma crítica a quê e a quem?

Passar daí para o problema geral do país é ainda mais abusivo, incoerente e bota-abaixo. A salsada de argumentos é tão grande que rebatê-los leva a um exercício demasiado confuso e que se tornaria tão sem-nexo como o texto a rebater.

Botar abaixo é fácil. Analisar as situações e criticar com pés e cabeça é mais complicado. Intervir ainda mais. Este senhor faz o quê para melhorar o país? Participa em alguma associação, sindicato ou partido? Ou são todos corruptos e ele é o único iluminado que para aí anda? Não é com estes textos que ajuda.

Este texto revela uma tremenda falta de capacidade de análise e contribui negativamente para melhorar a situação do país ao recorrer ao argumento demagógico de que são (sempre os outros) todos iguais: os políticos, os médicos que passam os atestados, os professores que os pedem, os presidentes dos conselhos executivos que lhes fecham os olhos (aliás, nem têm capacidade para contrariar um parecer de um técnico o médico), tu e eu, etc.

Desculpa o meu desabafo tão corrosivo mas eu não tenho muita pachorra para estes textos dos jornais de província escritos pelos sabichões de terras perdidas por aí. O penúltimo parágrafo, então, é de um pedantismo que até faz mal aos olhos.

O pior é que como uma maioria substancial de portugueses acha o mesmo que este senhor acerca de todos os outros mas não está disposta a fazer nada para alterar as coisas. E daí que achem que qualquer pascácio com um discurso mais musculado nos vai salvar da destruição. Não me refiro apenas ao Cavaco: no caldeirão dos salvadores sebastianistas cabem voluntaria ou involuntariamente o Portas, o Barroso, o Salazar, o Rui Rio, o PCP, o Vitorino, etc, etc, etc.

Um abraço já menos irritado depois deste desabafo,

Miguel

Por Blogger Miguel Pinto, Ã s 11:02 da manhã  

Ainda bem que a Ana não te mandou o texto a ti...
Mas fico contente por te ter ajudado a descarregar a irritação. :-)

Eu também não sou apologista de textos "bota abaixo" e concordo que a escrita deste tem o seu quê de "pimba". Mas, quando o li, achei alguma piada e não me parece que o retrato feito, apesar de um pouco exagerado (o antepenúltimo parágrafo teria muito mais razão de ser em Inglaterra), seja de todo descabido. Não creio que ataque "os outros", acho que está mais virado para a consciência colectiva. Eu sou um optimista pelo que nunca escreveria um texto assim. Mas isso não me impede de simpatizar com a analogia da nódoa.

Quando coloco estas coisas no blog, nem sempre pretendo transmitir uma ideia profunda. Limito-me a partilhar textos que me chamaram a atenção e que considero susceptíveis de reflexão. O teu comentário é portanto um bom contributo.

De qualquer modo, considero este José Ricardo Costa um pouco mais inteligente do que a Ana Gomes. ;-)

Abraço!

Por Blogger Nuno, Ã s 10:23 da tarde  

Vou ignorar as tuas duas provocações de hoje: a Ana Gomes e o Che Che... És um provocador nato e não se te pode dar confiança!

:-)

Abraço amigo,

Miguel

Por Blogger Miguel Pinto, Ã s 3:30 da tarde  

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